Fábio de Castro
De acordo com o pesquisador Claudio Mello, do Instituto de Ciências Neurológicas da Universidade de Saúde e Ciências do Oregon, nos Estados Unidos, a partir de março a comunidade científica internacional terá à disposição a primeira versão do seqüenciamento dos genes do Taeniopygia guttata, conhecido como mandarim ou zebra-finch. Mello, que também é um dos idealizadores do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN), coordena em Portland um laboratório que estuda o mecanismo de aprendizagem e memória em suas bases moleculares e genéticas. “O modelo que utilizamos, e que estamos desenvolvendo há alguns anos, é a aprendizagem do canto pelos pássaros canoros. Por isso, fazemos parte do consórcio que está seqüenciando o genoma do zebra-finch”, disse à Agência FAPESP.
Segundo o pesquisador, o aprendizado vocal é uma propriedade rara no reino animal, compartilhada apenas por humanos, golfinhos, baleias e três grupos de pássaros. “Além dos pássaros canoros, apenas o papagaio e o beija-flor são capazes de aprender a vocalização. Por terem uma característica tão especial de humanos, são um ótimo modelo para estudar o aprendizado da fala”, disse Mello, que é formado em medicina pela Universidade de Brasília e fez doutorado e pós-doutorado na Universidade Rockfeller. “Uma criança precisa ouvir a fala, memorizar o som e depois tentar imitar. Esses pássaros são os únicos que fazem algo semelhante”, disse. Cita como outros exemplos de pássaros canoros brasileiros o bicudo, o curió, o tico-tico, o sabiá e o canário. Mello explica que os comportamentos em humanos e mamíferos em geral envolvem áreas extensas do cérebro, cujo envolvimento com cada aprendizado é ainda pouco conhecido. “O grande interesse no nosso modelo, é que, no caso do zebra-finch, sabemos muito sobre a estrutura do cérebro e o circuito responsável está todo mapeado. O mapeamento genético virá complementar os estudos de forma decisiva”, afirmou.
Uma série de comportamentos dos pássaros canoros está associada à vocalização. Eles comunicam a presença do indivíduo e as fêmeas selecionam os machos de acordo com o canto, por exemplo. “Mas o mais impressionante é que eles desenvolvem dialetos. Como o canto é aprendido, cada indivíduo acaba com uma versão um pouco diferente. Essa diferenciação funciona como se fossem nossos sotaques regionais. É uma transmissão cultural”, contou.
As áreas associadas à fala e ao canto correspondem a vários núcleos definidos, interconectados e já mapeados pelo grupo de pesquisadores. Os circuitos são dimorfos, isto é, apresentam diferenças entre machos e fêmeas. Nas décadas de 1960 e 1970, os estudos sobre pássaros resultaram no primeiro exemplo claro de dimorfismo sexual.
Contribuição para a neurociência
O estudo do cérebro das aves deu outra contribuição ainda mais decisiva para a neurociência: ajudou a derrubar o dogma de que não se formam células novas no cérebro adulto. O macho canta durante a primavera, mas durante as migrações de outono não precisa do canto e os circuitos cerebrais correspondentes diminuem de tamanho, voltando ao normal sazonalmente. “Quando eles voltam a cantar, partes do cérebro tornam a crescer. Quando isso foi observado nos anos 80, constatou-se que as células aumentavam de tamanho, mas que também havia novas células no cérebro, ou seja, gênese neuronal”, disse Mello. Como a neurogênese ocorre de forma abundante no cérebro de pássaros, o modelo poderá servir para estudar as bases moleculares e a possibilidade de regeneração do cérebro após uma lesão. Os pesquisadores querem fazer estudos comparativos, aproveitando o mapeamento genético. “Em março, ficará pronta a primeira versão da recomposição do seqüenciamento. Mas a seqüência já está depositada em banco de dados de acesso público e estamos estudando as bases moleculares do processo, ou seja, que genes são ativados no cérebro e como essa maquinaria funciona”, contou Mello.
Convergência biológica
Os três grupos de aves que desenvolveram o aprendizado vocal o fizeram, aparentemente, de forma independente, de acordo com Claudio Mello. “É um caso claro de convergência biológica. Ao compreender a organização dos circuitos saberemos mais sobre o que é necessário para aprender a fala. Isso pode dar pistas muito importantes para entender o mesmo processo em humanos”, explicou. Segundo o cientista, antes de se conhecer a circuitaria neuronal associada com o aprendizado do canto, acreditava-se que cérebro de pássaro era primitivo, reduzido apenas à estrutura equivalente aos gânglios da base no cérebro humano. Nos humanos, embora reduzida, essa parte é importante por estar envolvida em doenças como Parkinson e Huntington – a degeneração dessa área leva a deficiências. Mas se o cérebro da ave se reduzisse a isso, ele não seria capaz de aprendizado. “Hoje, sabemos que se trata de uma porção pequena do cérebro, tanto em humanos quanto em aves. Cerca de 80% do cérebro de aves corresponde ao córtex, que é a mesma estrutura dos humanos. Esses circuitos de aprendizado estão relacionados a circuitos do córtex humano, o que abre perspectivas para estudar as correlações com o aprendizado do pássaro”, disse.
Nas conexões entre gânglios da base e o córtex dos pássaros foi descoberto um pequeno núcleo, essencial para o aprendizado vocal. É uma indicação de que provavelmente existe no cérebro humano um núcleo, no gânglio da base, que recebe projeções do córtex e que é importante para o aprendizado vocal. “Esta hipótese nunca tinha sido testada em humanos. Mas podemos usar o modelo em pássaros para realizar experimentações. Podemos fazer lesões, tornar inativo, fazer manipulação gênica, ligar um gene, desligar e entender circuitos responsáveis pelo aprendizado da fala”, disse Mello.
Fonte: Agência Fapesp
Nenhum comentário:
Postar um comentário