segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Auxílio tardio

Fábio de Castro

A ciência avançou o suficiente para oferecer alternativas eficientes no tratamento da dependência de álcool e drogas. Mas é difícil fazer com que o usuário procure o tratamento. O norte-americano Jim Anthony, professor do Departamento de Epidemiologia da Escola de Medicina da Universidade do Estado de Michigan, um dos principais especialistas do mundo em álcool e drogas, conta que nos Estados Unidos menos de 30% dos dependentes de álcool procuram auxílio médico nos primeiros dez anos após o primeiro contato com a bebida.

O epidemiologista, que foi da Universidade Johns Hopkins, publicou mais de 200 artigos científicos e livros. Segundo ele, fazer com que dependentes de drogas comecem o tratamento no início do processo é o principal desafio da ciência na área. A questão também estaria relacionada com a dificuldade dos pesquisadores em avaliar políticas públicas. A importância das pesquisas epidemiológicas na área é proporcional à gravidade do problema. A Organização das Nações Unidas estima que o comércio ilegal de drogas envolva, em todo o mundo, US$ 400 bilhões por ano, com conseqüências humanitárias incalculáveis. O tabaco, de acordo com estatísticas da Organização Mundial da Saúde, mata anualmente 4 milhões de pessoas. O álcool, segundo dados divulgados pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, é responsável por 60% dos casos de violência doméstica no Brasil e causa 50% dos acidentes de trânsito. Anthony veio ao Brasil para se reunir com pesquisadores do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica do Instituto de Psiquiatria da USP e planejar, em parceria com os brasileiros, um projeto de pesquisa cujo objetivo é entender melhor os problemas relacionados ao álcool nos países da América Latina.

O cientista apresentou, no auditório do Instituto de Psiquiatria, a palestra “Avanços na epidemiologia do uso de álcool e drogas”, no dia 6. Em seguida, concedeu à Agência FAPESP a seguinte entrevista: Agência FAPESP – Qual o principal desafio da atualidade na epidemiologia de álcool e drogas? Jim Anthony – Não é uma resposta fácil, porque as dificuldades são numerosas. Mas acho que a ciência precisa pensar sobre uma questão em especial: o intervalo de tempo do início da dependência de drogas até o primeiro contato com o tratamento. Essa é uma instância do fracasso do alcance das intervenções que visam a fazer as pessoas entrarem no tratamento bem no início do processo. Outra questão difícil é o contexto ligado às políticas públicas.

Agência FAPESP – Os dependentes levam muito tempo para procurar tratamento?

Anthony – Fizemos pesquisas sobre esse intervalo nos Estados Unidos. A proporção dos dependentes de álcool que inicia algum tipo de tratamento até cinco anos após o primeiro contato com a bebida varia entre 12% e 18%. Entre os usuários de substâncias ilícitas, a proporção é de 55% a 60%. Dez anos após o primeiro contato com a substância, de 25% a 30% dos usuários de álcool buscam tratamento. De 55% a 60% dos usuários de outras drogas buscam tratamento após dez anos de consumo. É muito pouco. Isso faz com que perguntemos por que não conseguimos ser mais eficientes.

Agência FAPESP – Quanto tempo o usuário demora para perceber que é dependente?

Anthony – Quando procura tratamento, a identificação da síndrome de dependência é imediata. Na prática clínica, usa-se um breve questionário que o paciente preenche na sala de espera enquanto aguarda a consulta. É rápido. O problema é que se demora muito para procurar o tratamento. A partir daí, passa-se ao domínio da pesquisa clínica, no qual houve muito progresso ultimamente, em termos de intervenções clínicas de curta duração.

Agência FAPESP – Como se define a síndrome de dependência?

Anthony – Geralmente há distúrbios na vida mental, com pensamentos recorrentes e obsessivos, distúrbio de comportamento, compulsão e manifestação de neuroadaptação à exposição da droga.

Agência FAPESP – O senhor mencionou as políticas públicas como outro grande desafio na área. Qual é a dificuldade nesse ponto?

Anthony – Há grande dificuldade em se definir políticas adequadas e, principalmente, em pesquisar os efeitos de uma determinada política para saber se ela está sendo eficiente. Sei que em São Paulo, por exemplo, há uma lei que restringe a venda de bebidas alcoólicas para menores. Aparentemente, lideranças políticas estão pressionando para reforçar a lei. Todos deveriam se perguntar sobre quais seriam os efeitos da legislação. Ela tem bons efeitos, como fazer com que a introdução das crianças ao álcool seja feita pelos pais, que têm mais chance de ensinar a beber com responsabilidade e moderação. Mas há maus efeitos também. Os menores podem procurar os amigos de 18 anos ou mais para comprar bebida. Cada intervenção tem efeitos bons e maus que precisam ser estudados.

Agência FAPESP – E por que é tão difícil pesquisar sobre essas intervenções?

Anthony – O desafio é que não há maneira simples de se fazer um experimento com amostras aleatórias para atestar os efeitos de cada intervenção. Por exemplo, você poderia dividir o Estado de São Paulo em várias unidades, impondo aleatoriamente em metade delas a restrição de bebida aos menores, ou um endurecimento da lei existente. Seria a maneira tradicional para testar os efeitos, mas é muito difícil de aplicar, porque os jovens podem simplesmente beber em outra jurisdição, distorcendo a avaliação. É muito difícil fazer testes aleatórios para avaliação dessas políticas e isso se reflete na dificuldade para julgar e tirar conclusões sobre as políticas públicas.

Agência FAPESP – Qual das drogas mais usadas é pior para a sociedade?

Anthony – Falando em termos de impacto na saúde e no aspecto social, o tabaco e o álcool são um flagelo muito pior que todas as outras drogas.

Agência FAPESP – Qual sua posição sobre as políticas relativas às drogas ilegais?

Anthony – Não acho que os epidemiologistas tenham uma opinião formal, fechada, sobre essa questão. Minha preocupação está basicamente no campo humanitário. Que tipo de sociedade nós queremos? Queremos uma sociedade na qual as penas por usar drogas são mais prejudiciais do que o uso das drogas em si? Acho que esta é, às vezes, a direção que tomamos. Fazemos as penas em termos de mandar alguém para a prisão por posse de drogas, por exemplo. Isso pode ser mais prejudicial que o uso da droga e precisamos alertar políticos e gestores de políticas públicas sobre isso. Há maneiras de desencorajar as pessoas do uso de drogas sem ter que desencadear conseqüências tão prejudiciais socialmente? Na maior parte das vezes, encarcerar alguém sai mais caro do que uma intervenção efetiva com tratamento adequado.

Agência FAPESP – O ponto fundamental seria não punir o usuário?

Anthony – Sim, isso é fundamental, mas não é fácil implantar políticas nesse sentido. A Holanda, como sabemos, descriminalizou o uso da maconha a fim de dissociá-la do mercado de drogas ilegais. Ainda não conhecemos bem as conseqüências dessa decisão. Conforme a experiência avançar, é bem provável que ganhe espaço em outros países. Nesse contexto, eu gostaria que os Estados Unidos voltassem à sua posição dos anos 1970, que não colocava na prisão pessoas que fossem detidas com pequenas quantidades de maconha. O conjunto da análise sobre essa questão começa a mudar de foco quando passamos do impacto sobre o usuário individual para o impacto sobre a sociedade.

Agência FAPESP – Como se dá esse impacto coletivo?

Anthony – Uma das questões sérias que ninguém ainda respondeu é qual o efeito sobre os menores de idade. Se podemos comprar maconha em lojas aos 18 anos, quanto tempo vai demorar até que ela esteja disponível para quem tem 12 ou 13 anos? O que vai ocorrer na vida dessas crianças? Se você libera para um segmento da população, como manter longe de outras partes da população? Se for possível ir a um café e comprar Cannabis, teremos o mesmo problema que temos com o álcool – o garoto de 18 anos se encarregando de comprar a droga para os menores.

Agência FAPESP – Qual o grau de severidade da dependência causada pela maconha?

Anthony – Não temos resposta para esta pergunta. E a razão para isso tem a ver com disponibilidade. Vamos dizer que eu esteja tratando um dependente de Cannabis. Uma das receitas para tratamento seria, evidentemente, afastar a pessoa do contato com a droga. Com uma droga mais rara é mais fácil controlar. Mas tabaco, álcool e maconha são difíceis de se afastar do usuário. Por isso, não se pode calibrar a severidade da dependência de cada substância. Se você olha para as pessoas que se tornaram dependentes de maconha, uma parte ínfima se envolve a ponto de roubar toca-fitas de carros para comprar a droga. Em parte isso ocorre porque ela é mais disponível e barata. Há muitas variáveis mudando para que se possa responder à sua pergunta. É um campo bem traiçoeiro.

Agência FAPESP – O senhor mostrou, durante a palestra, um aumento incrível do uso de maconha nos Estados Unidos desde a década de 1960. Por que isso ocorreu?

Anthony – O consumo cresceu vertiginosamente até o fim dos anos 70 e começo dos 80. Depois declinou e durante os anos 90 cresceu de novo, chegando agora aos mesmos níveis do pico. Mas o crescimento se deu porque mais gente foi exposta a ela e não por causa da severidade da dependência. Parte desse aumento veio em decorrência da disponibilidade e baixo custo. Outra parte porque o negócio da droga ficou mais eficiente no fornecimento. O declínio do consumo nos anos 80 estava associado a uma questão de mercado: a cocaína ganhou terreno por ser mais compacta, facilitando a penetração pela fronteira. Quando a fiscalização nas fronteiras aumentou, a maconha começou a ser produzida em território norte-americano, e o consumo explodiu novamente.

Agência FAPESP – O senhor acha que a mídia também teve um papel nesse aumento?

Anthony – Acho que sim, mas não tanto para a maconha quanto para as novas drogas sintéticas. A mídia amplifica o problema promovendo idéias sobre o uso de drogas. Acho que a mídia tem que falar sobre a droga, mas tem que moderar o espetáculo. O caso do crack nos Estados Unidos é emblemático. Quando apareceu, a publicidade foi tanta que ao olhar os jornais tínhamos a impressão que todo mundo estava usando crack. Mas era uma parcela muito pequena da população. O mesmo se deu com o LSD no começo dos anos 1970. Havia muita cobertura midiática, mas era uma parte minúscula da população. Acontece o mesmo com o ecstasy. O fenômeno parece maior do que realmente é. Isso dá uma sensação de normalidade. Quando o uso parece normal, comum, muita gente tende a querer experimentar.

Agência FAPESP – É perigoso para um país, em termos epidemiológicos, relaxar sua política em relação a drogas ilícitas?

Anthony – Em alguns casos o relaxamento diminui determinado problema, como ocorre na Suíça, onde se disponibiliza heroína para dependentes, que podem consumi-la em ambiente regulado e controlado. Isso daria certo nos Estados Unidos? Acredito que não. Temos muitas razões para pensar que não podemos generalizar as experiências de um país em todos os outros. As reações são diferentes. E não estou falando só em relação a drogas, mas de respostas diferentes a estímulos semelhantes. Vou dar um exemplo. Nos Estados Unidos, uma fração substancial das pessoas que são assaltadas – algo entre 8% e 12% – desenvolve casos duradouros de problemas psiquiátricos na forma de distúrbios de estresse pós-traumático. Na Suíça, apenas 5% das vítimas desenvolvem esses distúrbios. Não sabemos o que explica essa reposta tão diferente entre as populações.

Fonte: Agência Fapesp

Nenhum comentário: