segunda-feira, 7 de junho de 2010

Paraíso poluído

Canal aberto em 1855 facilitou espalhamento de metais pesados no litoral sul de São Paulo

Francisco Bicudo, da Revista Fapesp
 
A cidade de Iguape, no extremo sul do litoral paulista, é testemunha de que nem sempre é possível controlar o impacto gerado por pequenas intervenções no ambiente. Enraizada em meio ao mais extenso trecho contínuo – e bem preservado – de Mata Atlântica do estado, Iguape viu surgir a partir de 1827 um canal de apenas quatro quilômetros de extensão construído para encurtar o caminho que o arroz produzido às margens do rio Ribeira de Iguape percorria até o porto da cidade, de onde seguia para outras regiões do país.

Nesses quase 200 anos a cidade acompanhou também as drásticas mudanças ambientais, reveladas agora por pesquisadores do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), que esse atalho entre o rio e o braço de mar que separa Iguape de Ilha Comprida gerou na região.

Em sua inauguração em 1855, o canal do Valo do Rocio tinha apenas quatro metros de largura e dois de profundidade. Em pouco tempo, porém, as águas desviadas do Ribeira de Iguape e a circulação de canoas e barcos aprofundaram seu leito e erodiram suas margens. Hoje conhecido como Valo Grande, o canal tem até sete metros de profundidade e quase 300 de largura em alguns pontos. Ele despeja no chamado Mar Pequeno, o braço de mar entre Iguape e Ilha Comprida, quase 70% das águas do Ribeira de Iguape, que antes só chegavam ao Atlântico 40 quilômetros mais ao norte, onde o rio desemboca no oceano.

Toda essa água doce alterou as características físicas, químicas e biológicas do Mar Pequeno, parte do conjunto de lagunas, estuários, baías, ilhas e canais naturais que formam o complexo estuarino-lagunar Iguape-Cananeia-Paranaguá, um dos mais importantes viveiros de peixes e crustáceos do Atlântico Sul.

“Quando o canal foi aberto, não existia legislação ambiental e o nível de conscientização era bem diferente”, comenta o geólogo Michel Michaelovitch de Mahiques, diretor do IO-USP e coordenador dos estudos feitos em Iguape. “Não há como negar que o Valo Grande é a origem de muitas das mudanças ambientais identificadas na região.”

Há cerca de três anos a equipe de Mahiques coletou amostras de sedimentos em 14 pontos do Mar Pequeno. Com um equipamento de sondagem, os pesquisadores extraíram colunas de lama com até dois metros de profundidade. Esse material depositado no fundo de rios e mares guarda indicadores orgânicos e inorgânicos que permitem estimar as condições ambientais do passado – quanto mais profunda a camada, mais antiga a informação armazenada.

Analisando os sedimentos, eles observaram que o teor de sais diluídos na água do Mar Pequeno caiu muito após a abertura do Valo Grande e em muitos pontos a salinidade atual é zero – na cidade de Cananeia, a 60 quilômetros ao sul do canal, em períodos de muita chuva a água é praticamente doce. De lá para cá, também alterou o tipo de sedimento que chega ao Mar Pequeno. As águas do Ribeira de Iguape carregam grãos mais finos e mais matéria orgânica, relatam os pesquisadores em artigo publicado no final de 2009 no Brazilian Journal of Oceanography.

Essas alterações afetaram a fauna de bentos, organismos que vivem no fundo de rios e mares. Por exemplo, a diversidade de foraminíferos calcários, seres unicelulares sensíveis a mudanças na salinidade, diminuiu bastante – em alguns períodos eles desapareceram. A variedade de espécies aumentou recentemente, mas com uma composição distinta: hoje prevalecem as adaptadas à água doce.

O que se passa no fundo do Mar Pequeno parece influenciar também a vida em suas margens. Na última década a bióloga Marília Cunha Lignon, que integrava outra equipe do Instituto Ocea­nográfico e hoje trabalha no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, vem monitorando as transformações na vegetação e na paisagem dessa região. Ela notou que a 70 quilômetros ao sul do Valo Grande as árvores típicas de manguezais, como o mangue-branco (Laguncularia racemosa), o mangue-vermelho (Rhizophora mangle) e o mangue-preto (Avicennia schaueriana), formam bosques bem conservados.

Já nas proximidades do Valo Grande, onde a salinidade da água é mais baixa, a vegetação de água doce prolifera e pode impedir a fixação de plantas de mangue. “O crescimento dos bosques de mangue parece ser diferente nas duas regiões”, diz Marília.

Além de alterações na salinidade da água e na composição orgânica dos sedimentos do Mar Pequeno, Mahiques e sua equipe verificaram também uma alteração química que preocupa: níveis elevados de metais pesados, em especial o chumbo. É que esse elemento químico – tóxico, poluente e de difícil degradação – pode entrar na cadeia alimentar marinha, acumular-se no organismo de espécies de alto valor comercial, como robalos, pescadas, manjubas, camarões, ostras e mexilhões, e chegar às pessoas, causando danos no sistema nervoso central.

O sedimento extraído das imediações do Valo Grande continha teor de chumbo até 20 vezes superior ao de antes da abertura do canal – a 20 quilômetros do canal o nível de chumbo no sedimento diminui, mesmo assim é cinco vezes mais elevado que antes. A concentração de chumbo também variou no tempo.

Os níveis desse metal são mais altos no período correspondente à segunda metade do século XX, durante a atividade da empresa de mineração Plumbum, que funcionou de 1945 a 1995 em Adrianópolis, no Paraná. “Resíduos desse metal chegavam ao rio Ribeira de Iguape e eram transportados até a laguna, onde entravam pelo Valo Grande”, afirma Mahiques. Com o fim da Plumbum, o teor de chumbo nos sedimentos caiu, mas ainda não retornou aos níveis de pré-atividade industrial: hoje é em média cinco vezes superior ao esperado para a região.

Já se sabe que muitas pessoas que viviam nas proximidades da Plumbum têm altas concentrações de chumbo no organismo. Em 2003 uma equipe coor­denada por Bernardino Figueiredo e Eduardo de Capitani, da Universidade Estadual de Campinas, testou amostras de sangue de 335 crianças com idade entre 7 e 14 anos que viviam em dois bairros da periferia de Adrianópolis: em cerca de 60% dos casos, os níveis de chumbo eram superiores ao considerado seguro para a saúde.

Mesmo assim, Mahiques pretende verificar se as plantas e os animais da região de Iguape e Cananeia não absorveram parte do chumbo que ainda está no sedimento do Mar Pequeno, o que aumentaria o risco de contaminação humana. “Talvez”, diz Mahiques, “não tenhamos apenas um problema ambiental e geológico, mas também de saúde pública”.

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