segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Cinzas de valor

Preparação das fritas, insumo utilizado para dar acabamento final a peças cerâmicas

Produtos com alto valor agregado utilizam resíduo da queima do bagaço de cana

Yuri Vasconcelos, da Revista Fapesp
 
O acelerado crescimento da indústria sucroalcoo­leira nacional nos últimos anos alçou o Brasil a uma posição de destaque entre os fabricantes mundiais de combustíveis alternativos. Cerca de 27 bilhões de litros de etanol são produzidos por ano nas usinas do país. O fortalecimento da atividade fez crescer o volume de bagaço de cana-de-açúcar que sobra no processo de produção. A quase totalidade desse material que se tornou um subproduto de valor agregado é queimada em caldeiras e o vapor usado para gerar energia elétrica em turbinas e geradores. Com a queima, surgiu outro resíduo, a cinza do bagaço, cujo volume anual é estimado em 4 milhões de toneladas. Vários estudos estão propondo uma destinação econômica e ambientalmente viável para esse produto, como mostra o trabalho do físico Silvio Rainho Teixeira, da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (FCT/Unesp), em Presidente Prudente, no oeste paulista.

Ele já desenvolveu pelo menos três aplicações para o produto: a produção de briquetes, produto feito de pó de carvão da cinza que é prensado e serve como alternativa ao carvão vegetal comum; de fritas, insumo utilizado para dar acabamento final a peças cerâmicas; e de vitro-cerâmicas, material produzido a partir da cristalização controlada de materiais vítreos. Panelas e tampas de “vidro” de fogão elétrico são exemplos de utensílios vitro-cerâmicos transparentes. Um dos primeiros usos para aproveitar as cinzas do bagaço foi lançar esse material sobre as lavouras como um adubo complementar. Depois testes mostraram bons resultados na incorporação do material na fabricação de concreto (ver Pesquisa FAPESP n°171).

Teixeira explica que o primeiro passo para a formulação desses novos produtos é a separação da fração orgânica da inorgânica das cinzas do bagaço. Os briquetes são fabricados a partir da porção orgânica, enquanto as fritas e vitro-cerâmicas utilizam a parte inorgânica, que é rica em dióxido de silício (SiO2), matéria-prima dos vidros mais comuns. O carvão existente na cinza apresenta-se em dois formatos: pequenos pedaços, maiores do que um milímetro, que inicialmente flutuam e podem ser mecanicamente separados, e uma parte de carvão em pó fino, que se sedimenta junto com o material inorgânico.

A parte mais grossa é retirada usando-se peneira, enquanto a fina é separada empregando-se um hidrociclone, equipamento que separa partículas em suspensão em um líquido baseado nas densidades dessas mesmas partículas. Feita a separação, o pó do carvão é misturado a uma substância aglutinante – uma espécie de cola – e compactado, se transformando em pequenos cilindros ou barras, formatos mais comuns dos briquetes. Eles apresentam maior densidade e poder calorífico igual ou superior ao do carvão de madeira. Podem ter aplicação industrial ou residencial. “Como é difícil compactar o carvão puro para que ele adquira uma forma definitiva sem esfarelar, usamos um aglutinante”, diz Teixeira. Essa parte do estudo tem a coordenação do professor Algel Fidel Peña, da Unesp.

Pisos e azulejosA fabricação das fritas e das vitro-cerâmicas é um pouco mais complexa e exige alto gasto energético, porque é necessário submeter o material a um processo de fusão em temperatura elevada. A matéria-prima básica para a formulação desses produtos é a sílica existente nas cinzas do bagaço, que representam mais de 80% de seu peso, e outros óxidos – de ferro, alumínio, potássio, titânio, fósforo – também presentes no resíduo.

Como o ponto de fusão da sílica é muito alto, é preciso misturar a ela carbonatos de cálcio e carbonatos de potássio ou sódio para possibilitar que a fusão da mistura seja feita numa temperatura mais baixa, entre 1.300 e 1.450 graus Celsius. Após ser fundida, a mistura, em forma líquida, é despejada em um recipiente com água na temperatura ambiente. O resultado é um sólido com a estrutura atômica própria de um líquido, porque o resfriamento rápido “congela” o material e não permite que os átomos se organizem para formar um sólido cristalino. O material formado é um vidro que se quebra em pedaços muito pequenos chamados de frita. Ele é usado para fazer a camada vitrificada de peças cerâmicas como pisos, azulejos e vasos, entre outros. Teixeira estima que para cada quilo do resíduo é possível fabricar quase um quilo de frita.

A partir da frita é possível desenvolver peças de vitro-cerâmicas, um produto mais nobre e com maior valor agregado. Para isso, a frita é triturada até ficar um pó bem fino e aquecida lentamente, usando-se um aparelho de análise térmica. “Esse aparelho acompanha as reações que o vidro vai sofrer durante o processo. Quando aquecemos, fornecemos energia para os átomos se organizarem e se transformarem num material cristalino, com um padrão de organização simétrico.

Esse é um processo bastante conhecido e empregado. No nosso caso, a novidade é a utilização do resíduo da queima do bagaço de cana como matéria-prima”, afirma Teixeira. “De acordo com a mistura usada – o tipo e a quantidade de carbonatos –, são produzidos materiais cerâmicos distintos com propriedades diferentes. Nós estamos procurando obter materiais de revestimento como pisos, azulejos e outros que possam ser usados pela construção civil.” As cerâmicas vítreas – ou vitro-cerâmicas – apresentam propriedades importantes, como dureza superior à das pedras naturais, absorção zero de água e menor densidade. Por isso são usadas como revestimento interno e externo de edificações. Outra grande vantagem desse material em relação às pedras naturais é que ele permite a produção de grandes placas planas, curvas ou com a forma que se desejar para revestir colunas.

O desenvolvimento da vitro-cerâmica feita de cinza do bagaço contou com a colaboração dos pesquisadores espanhóis Jesús María Rincón López e Maximina Romero Pérez, do Instituto Eduardo Torroja de Ciências da Construção, de Madri, especialistas em vidro e cristalização de resíduos. Por enquanto, nem o processo nem os novos produtos (briquetes, fritas e vitro-cerâmicas) foram patenteados, mas Teixeira está avaliando essa possibilidade. Os resultados das pesquisas foram apresentados em eventos nacionais e internacionais, como o Congresso Brasileiro de Cerâmica, e publicados em revistas científicas. Segundo o pesquisador, depois dos bons resultados obtidos em laboratório, será preciso montar um processo de produção em escala piloto e avaliar os custos de implantação de uma empresa para uma precisa avaliação da viabilidade econômica das inovações.

Embora não existam negociações em andamento com empresas privadas para repasse da tecnologia, Teixeira diz ter sido sondado por firmas de consultoria e empresários do setor interessados em conhecer as inovações.

Negro de fumo
As possibilidades de uso da cinza de bagaço também recaem para a produção de um material importante para a indústria química, chamado negro de fumo, um insumo presente em tintas, vernizes, pneus, artigos de borracha e adubo, entre outros produtos. Uma solução orgânica desse material feita com cinza do bagaço foi criada pelo engenheiro químico paulista Leonardo Glidiz.

Ele diz que desenvolveu o material quando pesquisava por conta própria as cinzas de bagaço e alguns compostos de carbono para desenvolver um possível fertilizante quando, por acidente, derrubou no chão, na roupa e no material de estudo alguns compostos sólidos. “Irritado, fui tomar um café e, quando voltei para limpar, observei que o composto havia deixado marcas fortes, difíceis de sair”, recorda-se. “Reparei que o resultado do que parecia ser um desastre era, na verdade, um novo produto. Com ajuda de dois amigos, levei amostras para uma empresa para realizar um ensaio inicial e, para minha felicidade, o negro de fumo orgânico foi inventado.”

Glidiz não revela quem são os amigos e muito menos os compostos sólidos usados na experiência. Tudo faz parte do segredo da fórmula. O pedido de patente, tanto do produto como do processo e da marca “Bio Carbon Black”, foi requerido em 2007 no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Glidiz chegou a estagiar no hotel de projetos da Supera, a Incubadora de Empresas de Base Tecnológica de Ribeirão Preto para abrir uma empresa, mas desistiu e resolveu montar uma organização socioambiental e científica chamada de Centro Avançado de Pesquisa e Desenvolvimento em Bionanotecnologia, uma instituição sem fins lucrativos para desenvolver o negro de fumo orgânico e outros produtos. Ainda sem sede definitiva, o centro aguarda a instalação do Parque Tecnológico de Ribeirão Preto para reivindicar uma vaga.

“O negro de fumo orgânico que desenvolvemos é a única alternativa para substituir o atual produto derivado de petróleo”, garante Glidiz, que ganhou o segundo lugar na área de biotecnologia na Olimpíada da Agência de Inovação da Universidade de São Paulo (USP) em 2008. Por meio de um projeto da Coordenação de Aperfeiçoa­mento de Pessoal de Nível Superior (Capes), aprovado dentro da Chamada Pública MEC/MCT/MDIC que reúne os ministérios da Educação, Ciência e Tecnologia e Indústria e Comércio, Glidiz realizou seu projeto no campus da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP.

Também chamado de fuligem ou negro de carbono (do inglês carbon black), o negro de fumo é um pó preto que se caracteriza por ser a forma química do carbono livre de impurezas. Ele começou a ser fabricado em escala industrial em 1870. Sua primeira destinação foi a indústria de tintas. Nas primeiras décadas do século XX, o insumo ganhou importância com a descoberta de suas propriedades de resistência ao ser misturado à borracha no processo de vulcanização, processo usado na fabricação de pneu, desenvolvido pelo norte-americano Charles Goodyear. Acontece que o negro de fumo não ocorre na natureza e seu processo produtivo afeta o ambiente. A substância industrial utilizada é fabricada por pirólise, uma reação de decomposição que ocorre pela ação de altas temperaturas ou queima incompleta de materiais derivados de petróleo. Os gases residuais do processo incluem monóxido de carbono e metano. Segundo Glidiz, estima-se que sejam produzidas no Brasil por volta de 500 mil toneladas de negro de fumo por ano. O mercado mundial é avaliado em 11,7 milhões de toneladas com evolução média anual superior a 4%.

“A inovação que propomos é transformar as cinzas geradas na queima do bagaço de cana-de-açúcar no negro de fumo orgânico, um produto alternativo com vantagens ambientais, econômicas e sociais.” A etapa inicial de fabricação desse produto, segundo Glidiz, consiste em um estudo prévio das cinzas residuais do bagaço em usinas parceiras para desenvolver um sistema de coleta. Posteriormente, o resíduo é transportado até a empresa licenciada para tratamento, separando impurezas e selecionando o tamanho das partículas em peneiras vibratórias. O material final segue para misturadores com compostos reagentes para formar o negro de fumo alternativo.

O objetivo do pesquisador é licenciar a tecnologia para empresas interessadas – e não montar uma unidade própria para produzir o insumo e vendê-lo a terceiros. “Já tenho empresas de quatro diferentes segmentos industriais – construção civil e cerâmica, automotivo, plástico e polímeros – interessadas em montar o processo”, diz Glidiz. O investimento para montagem de uma unidade de processamento com capacidade de mil toneladas por ano é de aproximadamente R$ 500 mil, incluindo o valor do terreno, maquinário e compra das cinzas. O estudo de viabilidade econômica feito pelo pesquisador aponta que o retorno financeiro se dará em dois anos. Como parte do “segredo industrial”, um composto reagente será fornecido às empresas licenciadas para ser adicionado ao processo.

As análises e testes de engenharia de materiais realizados até o momento com o produto, segundo o pesquisador, foram promissores e tiveram resultados positivos. “Para a confecção de produtos que não dependem de certificação, a inserção do negro de fumo orgânico no mercado é imediata. Para algumas aplicações industriais, como pneus, no entanto, é preciso desenvolver e testar protótipos de três a cinco anos, conforme a legislação”, diz Glidiz.

Artigos científicos

1. Teixeira, S.R.; Peña, A.F.V.; Miguel, A.G. Briquetting of charcoal from sugar-cane bagasse fly ash (scbfa) as na alternative fuel. Waste Management. v.30, n.5, p. 804-07. mai. 2010.

2. Teixeira, S.R. et al. Sugar-cane bagasse ash as a potential quartz replacement in red ceramic. Journal of the American Ceramic Society. v. 91, n. 6, p.1.883-87. 2008.


O PROJETO
Desenvolvimento de material vitro-cerâmico através de vitrificação e cristalização de cinza de bagaço de cana – nº08/04368-4

Modalidade
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa

Co­or­de­na­dor
Silvio Rainho Teixeira – Unesp

Investimento
R$ 5.566,00 e US$ 37.892,50 (FAPESP)

Um comentário:

Anônimo disse...

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